quinta-feira, 17 de março de 2011

Do ponto de vista de olhos cansados

Gotas de chuva ácida caem como chumbo de um céu cinza-aço e corroem o asfalto gasto das ruas opacas da cidade sem cor.

Carros são prata, brancos, pretos, lata. Pessoas frias e sem sorriso, com pressa, sem educação, agressivas, covardes, inúteis, inertes.

A vida é sem graça, sem rumo, ritmada por necessidades esdrúxulas e pela compulsão de comer lixo tóxico no almoço e guardar um pouco pro jantar, acompanhado de gosmas borbulhantes e um pouco de mato verdejante.

Vermes são sempre um ótimo aperitivo para as pessoas-zumbis que moram em suas casas ocas, trabalham como escravos em missões Kamikaze e vivem rindo da desgraça alheia por puro medo de se olhar no espelho e morrer do coração por causa do reflexo moribundo que seria revelado. Vomitam uns nos outros sem pestanejar todas as divagações que puderem inventar apenas para conseguirem um pouco de glória. Nadam na lama seca e descansam sob a sombra de um muro de lamentações que estão incessantemente construindo. Amontoam-se entre si todas as manhãs e noites num espaço ridiculamente pequeno, numa mistura de auras podres que se junta ao suave odor fétido do rio vistoso que corta a cidade.

Acham no sábado motivos pra gargalhar com zorras de total ignorância e choram no domingo porque a vida vagabunda só pode durar dois dias na semana. Alguns deles estendem para mais de dois dias, orgulhosos de estarem com dor de cabeça e se achando espertalhões por terem dado calote no serviço.

Gostam de vestir roupas desbotadas e torrar no sol forte. Quando se juntam, conseguem fazer valer sua palavra a tal ponto que até conseguiram colocar um palhaço no Palácio, para que ele possa representá-los exatamente da maneira que são enquanto ganha seus 26 mil reais, valor que seus benfeitores jamais verão nesta vida em tão curto espaço de tempo.

Plantam árvores de concreto que crescem em alturas absurdas, onde pássaros imundos cor-de-nada fazem seus ninhos com fios de cabelo seco e pintado que caem sem parar das cabeças das donzelas cadelas sempre preocupadas com seu mundo moído e miúdo.

Seus sorrisos são de plástico, tão descartáveis quanto suas personalidades, suas opiniões. Seus sonhos — o que é isso mesmo?

Da torneira sai lodo, do chuveiro não sai nada. Mas pra que água? Bom mesmo é ligar a TV e ver mulher pelada.

Mas as pessoas-zumbi, residentes das casas ocas na rua sem cor de uma cidade sem vida, estão felizes: está chegando o carnaval (só pra encerrar jogando uma pá de cal).

terça-feira, 15 de março de 2011

O Passeio de Sarah

Em um campo aberto, Sarah corria alegremente; seus cabelos dourados balançavam desordenadamente, parecendo acompanhar o passo de seu vestido turquesa; ainda não acreditava que tinha chegado a Bloomsfields a tempo de sentir o calor do sol da primavera e o perfume das rosas a desabrocharem. “Um verdadeiro paraíso!” dizia para si mesma a todo o momento.

Realmente havia algo de paradisíaco naquele lugar: um parque que mais parecia um jardim imenso, com a grama muito bem aparada e flores das mais diversas cores. Havia também árvores grandes e pequenas — sendo algumas frutíferas —, que formavam uma fila perfeita; escondido atrás delas, um riacho de águas calmas e cristalinas fazia um barulho suave. Os olhos de Sarah brilhavam e sua vontade era de que o tempo simplesmente não passasse, ou que não precisasse voltar pra casa tão cedo, ou que, se possível, seus pais se mudassem para Bloomsfields para sempre!

Perdida em meio ao grandioso jardim, ela encontrou um local propício para cear e sentou-se na relva. Banqueteou na presença de esquilos, à sombra de uma árvore alta cujo fruto era doce e macio. Após comer, encostou-se no tronco da árvore e se permitiu relaxar por uns instantes. Com o clima propício e a calmaria ao seu redor, dormiu.

De repente, ouviu um barulho estranho. Assustada, Sarah esfregou os olhos e tentou identificar de onde o som vinha. Percebeu que já era noite e temeu pelo caminho escuro que deveria fazer para voltar ao local onde seus pais estavam. Ouviu outro barulho muito próximo a ela. Tentou ficar de pé, mas, de súbito, o chão começou a tremer, fazendo-a cair imediatamente. Desesperada, pôs-se de pé da maneira que pôde e tentou correr para algum lugar seguro, mas o que viu em seguida a fez ficar estagnada: o chão estava se partindo em dois, e um imensurável penhasco se formava à sua frente, afastando-a do seu caminho de casa! Sem acreditar no que estava acontecendo, permaneceu ali parada, pensando em alguma maneira de contornar a situação.

Ouviu-se, então, uma explosão. Vinda da fenda, uma enorme cortina de lavas se levantou, resultando numa chuva flamejante que começava a incendiar as árvores do local que antes era um lindo jardim. Neste momento, Sarah se lembrou das histórias que ouvira sobre Bloomsfields ter sido construída no pé de um vulcão há muito tempo adormecido e tido pelos moradores da região como inativo para sempre.

Agora percebia que todos estavam completamente enganados no quesito inatividade.

Já não havia como voltar. Num misto de maravilha e terror, via as gotas luminosas cortarem o céu num espetáculo sem igual, queimando tudo o que tocavam. Sem ver outra saída, Sarah correu em direção ao riacho o mais rápido que pôde para não ser queimada pela atípica chuva, atirando-se nele e batendo pernas e braços assim que caiu na água.

Mas esqueceu-se que não sabia nadar.

Seus braços e pernas cansaram, e viu-se em completo desespero ao tentar se manter na superfície. Havia se afastado da margem graças ao esforço inicial que realizou e agora estava exatamente no meio do córrego. Com todo o ar que ainda tinha nos pulmões, gritou o mais alto que conseguiu para pedir socorro. Não houve resposta. Então, segurou o ar restante, à medida que via seu corpo afundar mais e mais nas águas fundas daquilo que outrora lhe havia causado uma grande sensação de paz e tranquilidade.

Vendo que não podia mais aguentar, Sarah cedeu. Soltou o ar e começou a engasgar incessantemente com a água que agora lhe enchia os pulmões. Em um último instante, pensou em como aquilo tudo pôde acontecer em um dia que tinha tudo para ser belo, único, lindo. Chorando muito, começou a tossir, tossir, tossir...

Acordou, aos prantos, engasgada com a saliva. Olhou em volta e viu que ainda estava embaixo da árvore perto do riacho e que o sol começava a se por. Limpou o rosto rapidamente e saiu correndo para o local em que seus pais, àquela altura, a esperavam preocupados, já que a garota havia saído para passear já fazia algum tempo.

Sarah jamais foi vista em Bloomsfields novamente e nunca mais ousou visitar uma região vulcânica.


quinta-feira, 10 de março de 2011

Será?

Estava pensando... Será que chegará o dia em que não escreveremos mais à mão? Não sentiremos o cheiro de livros novos ao voar por entre suas páginas? Será que tudo caminhará mesmo para o mundo virtual cada vez mais?


Será que todo o sentimentalismo existente numa carta se perderá? A digitação rápida e barulhenta finalmente se erguerá sobre o toque suave do lápis sobre o papel? Será que, daqui pra frente, não teremos mais o eterno companheiro de viagem — o bom e velho livro —, pois será trocado pelos e-books? Perderemos, então, a essência da leitura?

Será que, qualquer dia desses, já não haverá mais livrarias, bibliotecas? Tudo será on-line, a cliques de distância? Não haverá mais a caminhada à tardezinha com o sol a nos iluminar até a banca de jornal? Não haverá mais aquele furor de folhear mais e mais livros, ansioso por encontrar algum que prenda sua atenção?

Será que nosso futuro é querer tudo na mão MAIS AINDA? Será que estamos mesmo nos dirigindo a um futuro solitário, em que não haverá mais necessidade — nem vontade, consequentemente — de sair de casa? Será que estamos forjando nossa cela, sem lembrar de criar uma porta, uma válvula de escape?

A tecnologia é incrível, fascinante. Uso a Internet, por exemplo, todos os dias para trabalhar e estudar e me manter atualizado em relação às notícias do dia. Ferramenta pra lá de útil, sem dúvida alguma. Mas, decididamente, não quero dela mais do que o necessário. Afinal, diversão mesmo é ter contato com amigos, viajar pelo mundo (e não na web), e até deixar a mente fluir com um pedaço de papel e uma caneta.

Às vezes, para se ir longe, não é preciso nem virar à esquina. Mas até que seria bom dar uma corridinha até lá, de vez em quando. (se é que você me entende ^^)

Abraços àqueles que veem o mundo além da tela à qual estão se inclinando neste exato momento.



(Antes que me chamem de hipócrita, tudo o que escrevo aqui já foi escrito em meu “livro pessoal”, no qual rabisco memórias de um universo que ainda estou descobrindo — o meu próprio universo.)